terça-feira, 24 de maio de 2011

Sobre Cigarros e Amores



"E se eu não tivesse saído da cama naquela manhã gelada? Se por um acaso do destino eu não estivesse feliz e determinada? Se ao menos a roupa não tivesse ficado boa... Ou melhor ainda, se o dia fosse chato, se a melhor amiga fosse má companhia? Quem me dera eu não ficasse feliz e satisfeita a ponto de ir para casa sorrindo."

 Naquela dia o ônibus não se demorou a chegar, nem faltava um lugar para sentar. Felicidade quase completa. Se "quase" fosse uma palavra que me bastasse, mas não. Nunca fui impulsiva, mas naquele momento algo me fez saltar de prontidão do ônibus alguns pontos antes do meu. Eram quase umas oito da noite quando passei de um lado para o outro da avenida, coração entre os dedos suados e apertados, estômago revirando, breves vontades de rir, já não sabia mais o que era certo. Mas se ao menos o bom senso tivesse me levado para casa, onde apenas ficaria me perguntando se fizera a escolha certa. Porem, lá estava, na frente do seu prédio sem saber por que.

 Eu olhava para os números no interfone esperando alguns sinal, talvez um número da sorte ou uma luz na memória que me fizesse voltar à três anos atrás naquela noite extremamente parecida com a que eu me encontrava no momento. O que eu poderia fazer? Tocar em todos até encontrar o certo? Não seria muito normal, mas naquela altura quem era eu para julgar normalidades. Eu não sabia como seria encontra-lo depois de tanto tempo, nem como reconhece-lo, muito menos o que diria, mas não me importava nem um pouco, sabia que tinha que estar ali, sabia que minha vida mudaria por isso.

 Isso já faz mais de um ano, mas ainda hoje não consigo me recordar de quanto tempo eu fiquei ali na frente daquele prédio fumando mais de mil cigarros, roendo as unhas e tendo frenéticos ataques de risos incontroláveis. Pensei em espera-lo, eu o reconheceria? Ou melhor, ele se lembraria de mim? Da menina de 16 anos, que usava cabelos cumpridos e calça jeans e que hoje era dona de seu adorado cabelo curto e senhora de todo um estilo diferente, piercing no nariz e tatuagem nas costas?

 Entre um cigarro e outro eu me pegava ensaiando uma reação, o que ele diria, o que eu responderia, como explicar essa súbita aparição no meio da semana. Eu só poderia estar louca em achar que aquilo daria em mais alguma coisa a não ser em uma história engraçada que eu contaria para mim mesma milhões de vezes.

 Quando estava prestes a desistir e ir embora, talvez quem sabe tentar outro dia, ou nunca mais, esquecer aquela doideira de filme, de reencontro marcante, de amor; Como um sinal vi um rapaz que aparentava uns vinte e poucos anos entrando no prédio, sim, era aquela a hora de descobrir, de tentar, então com um ar de louca desvairada eu o perguntei se por um acaso conhecia um Fulano de Tal que morava ali. Que doce vida estranha, o rapaz morava com ele! Ora bolas! Então era isso? Eu finalmente consegui. Porem como nem tudo é realmente tão perfeito e cinematográfico, ele não se estava em casa ainda. Para que me queixar, eu já tinha conseguido e muito. Deixei ali apenas um rapaz muito assustado e meu número de telefone.

 A ansiedade de reencontra-lo deu lugar a ansiedade de chegar logo em casa, pensava eu que como uma boa filha da Lei de Murphy, ele ligaria antes de eu conseguir abrir o cadeado do portão. Dito e feito. Revirava a bolsa procurando a chave desesperadamente enquanto lá dentro o telefone gritava. O nervosismo me fazia rir desesperadamente em meio aquela situação. Quando finalmente consegui entrar, obviamente, o telefone já havia parado de tocar. Corri para ver a ultima ligação, não tinha como saber se era ele, apenas sabia que era um número desconhecido que provavelmente poderia ser. Provavelmente. Ligar ou não? Na pior, ou melhor, das intenções eu estaria apenas matando minha curiosidade. Enquanto o telefone chamava, meu coração na boca fazia meus suspiros gaguejarem. Eu não aguentei, desliguei depois da terceira chamada, confesso que estava parecendo de novo uma adolescente de 16 anos, mas o que eu poderia fazer, deixei por isso mesmo.

 Engraçado que quando deixamos de lado as coisas, elas simplesmente acontecem, talvez se eu ficasse ali ao lado do telefone ele não tocaria tão cedo, mas foi eu ir para o meu quarto e começar a me desfazer da meia-calça, da jaqueta, da esperança e do cachecol, que o telefone tocou novamente. Eu não me lembro de abrir a porta e atravessar o corredor até a sala para atender, só me lembro de atender tentando fazer uma voz de inesperada surpresa. Sim, sim, era ele. E para o meu espanto eu não precisei descrever muito quem era, ele já sabia, foi como ligar no dia seguinte do nosso primeiro e único encontro. Foi deveras engraçado. Tudo correu mais ou menos da maneira como eu imaginava, a menos pelo inesperado convite para encontra-lo naquela mesma noite, não titubeei, apenas gaguejei ao dizer que seria ótimo.

 Mais uma vez não me lembro de me vestir, pois também foi muito rápido. O ônibus não passava e tive a ligeira impressão que algumas pessoas que compartilhavam a espera junto comigo começaram a me achar um pouco louca... Ok, acho que muito louca, pois eu estava mais feliz que o normal, mais feliz do que é o aceitável de ser feliz em um ponto de ônibus. Dessa vez eu tinha tudo, o número do apartamento e a certeza de que o veria mais uma vez.

 Tentei me manter calma e agradável. Quando ele saiu pela porta do prédio eu pensei comigo: "Uau ele continua o mesmo". E com seu cavalheirismo e gentileza ele me reconquistou, talvez até mais do que quando leu um poema do Pablo Neruda na beirada da minha nuca. Sentados na mesa do bar foram cervejas, assuntos botados em dia, sorrisos, olhares, e todas aquelas formalidades de um flerte. Já não sabia mais que dia era, nem as horas e nem me recordava mais do tempo em que fiquei parada do outro lado da avenida. Não havia arrependimento, não havia mais nada além de um sentimento bom.

 Como nos cinemas, ele me convidou para entrar com o pretexto de ver um filme sobre o qual tínhamos conversado. Na verdade eu mal ouvi o convite, aceitaria tudo naquele momento, só não aceitaria me jogar do alto de um prédio em queda livre, pois aquilo eu já havia feito, me joguei em queda livre do seu olhar intimista. Não me lembrava muito do apartamento, apenas me lembrava do livro do Pablo Neruda que hoje está em alguma estante da minha casa. Eu não estava mais tão nervosa, não tinha mais por que, nada mais tinha por que.

 Sejamos sinceros, não conseguimos ver o filme. Talvez esse fosse meu maior medo, uma hora eu teria que baixar a guarda e deixar acontecer aquilo que era esperado. A situação era ideal, o momento era certo, ele ainda era o homem perfeito, me deixava louca com seus braços envolvendo minhas costas, seu rosto que por horas a fio eu ficava desenhando com a ponta dos dedos, e as palavras tinham o dom de desaparecer como se não fosse preciso falar nada. E não foi preciso. Minha alma congelava de prazer, era como dançar um bolero, você acha que não sabe mas quando ouve não consegue se controlar, era como se cada parte do meu corpo soubesse o que fazer. As mãos supriam aquilo que não era falado, os olhos iluminavam o quarto escuro e a pele era o único calor. Mais bonito que um poema do Neruda, mais gostoso que ouvir jazz, mais infinito que a madrugada.

 O relógio de ponteiro no criado mudo ao lado da cama, era só isso que ouvíamos por horas, ou sei lá quanto eu ficava recostada no seu peito, deitados na cama sentindo um sentimento que parecia eterno. Ele falava, contava histórias, ora triste, ora feliz, eu não sei muito bem sobre o que ele falava, eu apenas ouvia, não pela história, mas pelo som da sua voz. A madrugada virou manhã e o inconveniente despertador tocou as sete da matina, isso não acontece nos filmes.

 As noites viraram essa mesma rotina, esses mesmos devaneios. Ir para casa era torturante, quase um martírio, mas no caminho tudo tinha mais vida, as músicas faziam mais sentido, e as marcas no meu corpo ainda me faziam rir. Inspirada eu escrevia, ainda não entendo por que não contei essa história antes, talvez eu ainda não tivesse uma noção do final. Talvez até hoje eu não tenha essa noção, ou talvez eu tenha, só não entendo.

 Tempo, tempo, tempo, tempo. Algo começou a se transformar com o tempo. Talvez o bom senso tenha voltado para casa. Pena que foi para a casa errada. Um sentimento obsessivo tomava conta de mim, já não conseguia mais ser eu mesma, já não me baseava mais nas mesmas coisas, o brilho nos meus olhos me ofuscava. Sacrifícios como sair da minha casa a uma da manhã para encontra-lo, rendia-me a caprichos conforme a minha sede. A volta para casa já não era mais tão gratificante. A beleza foi se perdendo pelo chão do quarto, mais do que nossas peças de roupas que se misturavam no escuro na noite. Ainda me lembro de uma noite que fui caminhando até o mercado em frente a sua casa e enquanto esperava o ônibus para voltar o vi entrar, não sei por que, mas eu não tive vontade de atravessar a rua. Talvez fosse a companhia do bom senso.

 Em um madrugada qualquer eu fui até sua casa. Não fui feliz, naquela manhã eu acordara com a certeza de que teríamos um ultimo encontro. Teria sido melhor não ir, mas isso apenas adiaria o que já estava para acontecer a muito tempo. Fui para que se fosse acabar que pelo menos acabasse bem, se é que isso é possível. É, e não foi. Nessa noite não existiam duas almas na cama, apenas dois corpos gelados e incompatíveis. No final foi cada um para o seu lado, sem abraço, sem conversa, sem risos e sem sentimento bom. Em silêncio eu derramei algumas lágrimas, não sei se ele percebeu, mas mesmo que tivesse não haveria sensibilidade naquele momento, de ambas as partes. Minhas lágrimas não eram para ele, e sim para o adeus que não tem volta. Na manhã seguinte eu mal via a hora de partir, sofria mais na sua presença do que na distância física, de qualquer maneira já estávamos distantes. Ele me acompanhou ao ponto, e diferente de antes quando passados os últimos minutos grudados, ele disse adeus e virando a esquina se foi, eu subi no ônibus com um suspiro aliviado mesmo sabendo o sofrimento ainda estava por vir, e eu esperei.

 Ok. Chegamos ao fim, mas o final da história não é esse. Esse é o final do nosso, se é que posso chamar assim, relacionamento. Demorou muito para fechar as feridas, as do coração e as que ele me deixou nas costas, lembranças da ultima noite. Por um bom tempo foi difícil passar em frente ao prédio e não olhar procurando qualquer sinal da sua presença, até mesmo ir ao mercado me deixava apreensiva, eu poderia virar qualquer corredor e dar de cara com ele, qualquer música, qualquer poesia. Acho que o sofrimento é a parte mais brega do amor.

Demorou muito, mas um dia eu acordei de manhã e me dei conta. Fiz as contas e fiz de conta. É como dizem, no final você sempre ri de tudo, então relembrando tudo isso que aqui lhes contei, tomando um bom chá na mesa da cozinha eu dei uma boa gargalhada daquelas de doer a barriga e decidi ir ao cinema ver um bom filme como a tempos não fazia.
De lá pra cá muita coisa mudou, eu não moro mais na mesma casa, nem na mesma cidade, nem tenho o mesmo emprego, mudei o cabelo e eu ainda estou viva! Continuo me apaixonando todos os dias, me entregando, errando, aprendendo... sofrer é opcional. É como eu sempre dizia à ele: Vamos nos limitar apenas a viver meu caro, isso já basta!



Maya Costa (terça-feira 24.05.2011)

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